“Todo leitor reconhece que a diferença entre as duas partes de Dom Quixote é que todos os personagens mais importantes na parte dois são ou explicitamente creditados como tendo lido a parte um ou sabem que foram personagens dela.” A frase é de Harold Bloom, o crítico canônico, em seu Cânone Ocidental, em que dedica um capítulo inteiro ao Quixote.
(Para ele, Cervantes é o único páreo possível para os dois escritores que considera o “centro” do cânone da literatura ocidental: Shakespeare e Dante. E os personagens do Quixote, o próprio Dom e seu amigo Sancho só teriam equivalentes de profundidade em uns poucos personagens shakespearianos. Não é pouco elogio.)
O fato é que a primeira parte do Quixote, lançada em 1605, havia sido um tremendo sucesso de público. E a continuação da história era muito aguardada. Tanto é que houve, antes que Cervantes publicasse sua sequência “verdadeira”, a edição de pelo menos uma continuação não autorizada. Mas lógico que não chegou aos pés do original, tanto é que ninguém hoje lê a falsa quixotada.
E Bloom fala de um fato capital na exposição da segunda parte. Cervantes brinca de ser “pós-moderno”, como chamaríamos hoje. E bota os próprios personagens da história como conscientes de que são personagens de um outro livro. Em cada lugar que vão, as pessoas dizem a eles que se divertiram muito lendo suas aventuras.
É claro que não se trata de uma metaficção tão arriscada: Quixote e Sancho, no volume dois, continuam acreditando que são de carne e osso. Apenas ficam sabendo que alguém narrou sua história e ficam interessados por isso.
Mas o livro não está interessado meramente em técnicas narrativas, muito pelo contrário. Cervantes, no prólogo, diz que “cortou” o seu segundo Quixote do mesmo pano que o primeiro. Isso quer dizer, entre outras coisas, que à primeira vista tudo fica igual: é uma longa história das conversas de Sancho e de Quixote enquanto os dois saem pelo mundo em busca de aventuras de cavaleiro andante e escudeiro.
Algumas das histórias mais belas do Quixote estão no segundo volume (há quem prefira o primeiro, quem goste mais da continuação). Uma delas é o conto de Sancho Pança como governador, de que falo no post da próxima semana. Outra é a história do Mestre Pedro, que aparece como um contador de histórias e fornece uma bela metáfora a Cervantes.
O mais importante é que tudo flui como no primeiro volume. O mesmo Harold Bloom diz que não é possível perceber nenhum cansaço em Cervantes. Bloom diz que só percebe uma certa tristeza no autor ao encerrar seu imenso livro. “O que acontece com Cervantes nesta parte me comove mais, porque muda a relação com seu texto. Encaminha-se para a morte, e alguma coisa sua (como ele sabe) morrerá com Dom Quixote, enquanto outra coisa, talvez mais profunda, continuará vivendo em Sancho Pança.”
Ao final do volume, Quixote morrerá. Cervantes, ele próprio, só viveria mais um ano, depois de publicar um único livro a mais. Na morte, Quijano, o personagem que depois de embirutar vira Quixote, cai em si, percebe que estava fazendo insanidades, se confessa, vê agora qual é o mundo real, e só então sai de cena.
Mas, antes disso, passa por mais de 700 páginas de aventuras, diversão e de descoberta do humano. Que é o que vamos ver ainda aqui nas próximas semanas.
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