Em uma das suas expedições, Vladimir Kozák posa entre índios do Xingu
MEMÓRIAO resgate da vida de Vladimir Kozák
Pesquisadores e entusiastas da obra do “cineasta dos xetás” decifram os mistérios do homem que viveu 40 anos em Curitiba.
Em 1974, ao assumir o laboratório de fotografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o fotógrafo Paulo Koehler percebeu que as gavetas de seu novo posto de trabalho estavam abarrotadas de negativos deixados por seu antecessor na função – o checo Vladimir Kozák. Não era assunto para ser resolvido pelas mulheres da limpeza, o que já vinha acontecendo. Embora cumprisse uma função burocrática na UFPR – ele registrava pesquisas de campo dos professores da casa –, Kozák firmara seu nome como cineasta e indigenista, sendo imediatamente associado ao povo xetá, em via de extinção, filmado por ele a partir de 1951, na Serra dos Dourados, Norte do Paraná.
Seu trabalho junto a essa e outras tribos obtivera repercussão internacional, tendo Kozák publicado artigos em revistas americanas, exposto fotos e desenhos de próprio punho no Canadá e incorporado seus filmes ao Museu do Homem, na França. Aquele material esquecido em uma sala do edifício D. Pedro II, ainda que secundário, poderia se somar ao legado do estrangeiro.
Acervo Museu Paranaense
Cena de um casamento italiano de 1955 para um estudo sobre a vida na Colônia Santa Felicidade
Revelações
Entrevistados contaram pequenas histórias de um dos maiores nomes do documentarismo e indigenismo brasileiro:
Celibato
Uma das curiosidades sobre a vida de Vladimir Kozák é por que não teria se casado. Em confidência ao colega de trabalho Oldemar Blasi, ele teria contado que na juventude, quando aprendeu a consertar aviões, na antiga Tchecoslováquia, sofreu um acidente com uma mola, na região dos genitais, e se tornou impotente.
A irmã
A aquarelista Karla Kozák passou a viver no Brasil com o irmão, Vladimir, depois da morte dos pais. Ela o acompanhava nas expedições e cuidava da alimentação e da casa. Em uma das viagens, contraiu uma infecção que a castigou. “Era uma mulher grande como ele, mas ficou muito magra. Ele nunca mais foi o mesmo”, conta Blasi. Karla morreu em 1960. Seu quarto na casa do Uberaba ficou fechado por duas décadas, tal como o deixou. Foi aberto em 1979, depois da morte do cineasta.
Mercantilismo
O fato de Kozák vender parte de seu acervo pessoal para uma instituição canadense, entre outras negociações, causava mal-estar entre os antropólogos e arqueólogos, que passaram a acusá-lo de mercantilista. Os mais próximos atestam que ele vendeu o que conseguiu em viagens solo e que era essa a única maneira de custear filmes coloridos, que eram revelados nos Estados Unidos. Ao morrer, o cineasta ainda tinha créditos nos laboratórios americanos.
Vigia dos “gatos”
Com a exploração comercial da eletricidade no Paraná, as contas de luz ficaram altas. Curitibanos se especializaram em fazer “gatos” de luz. Uma das funções de Kozák nessas companhias, dado suas habilidades técnicas, era ir de porta em porta das casas para identificar as peripécias dos fraudadores.
Loureiro Fernandes
Embora tenha sido o etnólogo o responsável por trazer Kozák para o Museu Paranaense e posteriormente para a UFPR, os dois tinham relacionamento difícil. “Viviam em litígio”, comenta Igor Chmyz. As brigas eram motivadas nos trabalhos de campo, a exemplo da ocasião em que Kozák ficou dias e dias “abraçado” aos xetás para que produzissem um machado de pedra. “Era um trabalho difícil”. A contenda era quase sempre a mesma: a quem pertencia o trabalho? Kozák o reivindicava para seu acervo. Fernandes, para a universidade.
Cotidiano
Igor Chmyz conta que via Kozák com frequência na UFPR. Ficaram amigos. É o único a descrevê-lo como cordato. E dele aprendeu técnicas inimagináveis na década de 1960, como a de impermeabilizar barracas de acampamento. Chmyz também o via preparando farinhas de biju com ovos, que acondicionava em latas – verdadeiras barrinhas de cereal pré-históricas que o sustentavam na mata. “Mas acabava dando-as aos índios, aos quais nada se podia negar”. A carência de comida o obrigava a se nutrir com o que os índios lhe davam, quase sempre adoecendo. Essa carência explica a obsessão de Kozák por comida. “De tanto passar fome, comia compulsivamente. Os bolsos de seu colete de fotógrafo estavam sempre recheados de alimentos.” Na última vez que o visitou, provavelmente em 1978, Igor o presenteou com um bolo de chocolate.
Anedota
As obsessões de Kozák provocavam situações curiosas. Certa vez, guardou uma cascavel morta, em um saco plástico, na geladeira da universidade. À noite, reuniu xetás no Uberaba para documentar como se fazia alimento com as cobras. “As zeladoras da UFPR mal podiam imaginar o que havia nas sacolas que ele carregava.”
Solidão
A morte de Karla agravou o temperamento retraído de Kozák. Conta-se que nos últimos anos, chegou a pregar as janelas de sua casa, temendo saques a seu acervo, e cortou a energia elétrica – o que não deixa de ser curioso em se tratando de um ex-funcionário da Força e Luz. Após sua morte, em 1979, peças do acervo e sua Rural foram roubadas, mesmo com segurança policial à porta da casa.
Linha do tempo
⇒ 19 de abril de 1897: Vladimir Kozák nasce em Brystice pod Hostynem, próximo a Brno, Morávia, então Tchecoslováquia. Na adolescência faz curso técnico de Engenharia Mecânica e domina bases do desenho, pintura e escultura.
⇒ 1914-1918: Participa da Primeira Grande Guerra.
⇒ 1924: Decide se mudar para os EUA, atraído pelo desejo de conhecer os índios norte-americanos. Mas seus conhecimentos em eletricidade e a possibilidade de empregos na América do Sul, o trazem para o Brasil. Vive na Bahia, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Visita as primeiras reservas indígenas.
⇒ 1938: Muda-se para Curitiba, onde se torna funcionário da Bond and Shere e da Força e Luz do Paraná. Mora em princípio na Rua Alferes Poli e posteriormente no Uberaba. Mantém rotina de filmar e fotografar tribos e manifestações populares no interior do país.
⇒ 1940: Em companhia de amigos, descobre a Gruta da Fada, na Região Metropolitana de Curitiba. Nesta década, participa da implantação da Usina do Rio São João, em Chaminé, em São José dos Pinhais.
⇒ 1946: Aposentado na Força e Luz, trava amizade com o pesquisador Loureiro Fernandes e se torna voluntário no Museu Paranaense. É nomeado diretor da Seção de Cinema Educativo do museu. Produz filmes sobre cidades do Litoral, Vila Velha e Foz, exibidos nas escolas públicas.
⇒ Década de 1950: Faz expedições para o Mato Grosso, Goiás, Maranhão, Pará e Alto Xingú, produzindo material fotográfico, desenhos e pinturas que mais tarde venderá a museus do exterior, como alternativa para sustentar a compra de filmes coloridos, que eram revelados nos EUA. Com a federalização da UFPR e a diminuição dos investimentos no Museu Paranaense, é levado por Loureiro Fernandes para a UFPR, na qual passa a trabalhar como técnico de fotocinematografia.
⇒ 1955: Ao lado de Loureiro Fernandes, Kozák faz sua primeira incursão à Serra dos Dourados e toma contato com os xetás, em vias de extinção. Faz nova viagem em 1961. Expedições deram origem a seu documentário mais importante.
⇒ 1960: Morre Karla Kozák, sua irmã mais velha, em decorrência do desgaste físico provocado pelas viagens, nas quais o acompanhava. Fato torna Kozák ainda mais introspectivo.
⇒ 1963: Publica artigo sobre funeral bororo na revista norte-americana Natural History.
⇒ 1968: Expõe fotos e pastéis no Glenbow Alberta Institut Museum, no Canadá.
⇒ 1972: Publica novo artigo na Natural History, agora sobre os xetás.
⇒ 3 de janeiro de 1979: Morre Vladimir Kozák, aos 81 anos. Os últimos anos foram de isolamento na casa do Uberaba, amparado por amigos como Edilberto Trevisan e Igor Chmyz.
Fonte: Oldemar Blasi; Museu Paranaense.
Koehler não estava enganado. Salvou dois conjuntos de imagens de irem para o lixo. O primeiro é uma série de fotos da Colônia Witmarsum, em Palmeira, nos Campos Gerais, provavelmente da década de 1950, destinado a um estudo sobre a ocupação dos Campos Gerais. O segundo é o registro de um casamento à italiana, no ano de 1955, feito para um estudo da historiadora Altiva Pilatti Balhana, editado posteriormente em revista acadêmica.
Passados 30 anos, o material foi restaurado por Koehler no sistema fine art e repassado ao Museu Paranaense, no qual estão 44 mil itens do acervo de Kozák, entre objetos pessoais, fotografias e 88 dos fabulosos filmes que produziu, particularmente sobre índios e sobre a cultura popular brasileira. A maior parte do material estava na casa de Kozák, no bairro Uberaba, até 1979, ano de sua morte. Como não tinha herdeiros, o patrimônio ficou sob a custódia do Estado.
Confraria
O que Koehler não podia prever, ao guardar os lotes, era que, nas três décadas que se seguiram, uma espécie de confraria informal se agregaria em torno da memória do cineasta, atraída pela importância da sua obra e pelos mistérios que ainda envolvem sua vida. Não por menos. Impossível não se render à curiosidade diante daquele homem de cultura extraordinária, poliglota, criativo, capaz de passar longas jornadas na mata, dado a gestos grandiosos de amor pelos índios – chegava a fica nu como eles –, mas ao mesmo tempo arredio, espartano, amargo e solitário, próximo de um ermitão.
Cada fato novo em torno dele, ainda que pequeno, causa turbulência. As fotos de Witmarsum e Santa Felicidade são um exemplo. Chamam atenção para um lado menos valorizado da trajetória de Kozák – de funcionário da UFPR –, ainda que tenha passado mais de duas décadas na instituição. “Era uma fotografia documental, bem diferente do que fazia por sua conta, ainda que tenham um toque particular. Ele era uma figura meio marginal na universidade”, sugere Koehler. “Em campo, ele contribuía muito, dava sugestões”, contrapõe o arqueólogo Igor Chmyz, um dos poucos que conseguiram travar amizade com Kozák.
As divergências indicam que o enigma Vladimir Kozák ainda vai render muitas surpresas, particularmente no que diz respeito ao acervo do Museu Paranaense. Além de um catálogo prometido para este ano, a equipe do museu, sob orientação da antropóloga Maria Fernanda Maranhão, faz a leitura das cerca de 3 mil cartas do cineasta. Fernanda adianta que ele falava pouco de si – destacando um elogio que fez à mãe, mas tratando em geral de assuntos de trabalho. O arqueólogo Oldemar Blasi, primeiro responsável pelo acervo, em 1979, acha que não. “Ele tinha muitas queixas contra o Brasil, a burocracia e tudo mais. Foi um homem amargurado e não escondia.” Quanto a Kozák, como se vê, não há consenso.
Perfil
O viajante amargurado
O viajante amargurado
Os arqueólogos veteranos da UFPR Oldemar Blasi e Igor Chmyz fizeram expedições com Vladimir Kozák entre os anos 1950 e 1960. À maneira do historiador Edilberto Trevisan, morto em 2010, com folga a fonte mais importante sobre o cineasta checo, Chmyz participou de sua intimidade. Mas foi Blasi, à frente do Museu Paranaense, quem listou o acervo, acomodado às escâncaras na casa em que Kozák vivia no Uberaba, hoje uma biblioteca municipal.
Cada um, a seu modo, guarda parte da biografia desse homem surpreendente – uma fortaleza de 1,90m, voz de trovão em sotaque martelado, temperamento de neurótico de guerra, capaz de perder 20 quilos durante as expedições. Os que não o conheceram, mas que se juntaram ao seu “círculo de confiança”, não fogem à regra. Somam dados e perguntas a essa biografia que não se resolve em poucas linhas.
O cineasta Fernando Severo, diretor do Museu da Imagem e do Som, projetou Kozák nacional e internacionalmente com o premiado curta-metragem O mundo perdido de Kozák, lançado em 1988, vencedor de 17 prêmios. Praticamente o apresentou às novas gerações, tornando-se um marco na curiosidade em torno do visitante estrangeiro. A antropóloga Maria Fernanda Maranhão o “descobriu” em 1987 ao abrir uma gaveta no Museu Paranaense. “Estava cheia de documentos”, conta. Hoje, a pesquisadora tem acesso às cartas do cineasta e é autoridade no acervo que deixou. Deve-se citar ainda a diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFPR, a antropóloga Márcia Rossato, apontada como a maior estudiosa de Kozák; e a etnóloga Maria da Graça Simão.
Para Blasi, as agruras da Primeira Grande Guerra explicam parte do temperamento e da obsessão de Kozák, que viveu em Curitiba de 1938 a 1979. “Ele me contou ter mergulhado em águas geladas, durante o conflito, para construir uma ponte”, lembra o arqueólogo. A decepção com a Europa teria reforçado seu imaginário sobre o “elo perdido” dos índios americanos, cujas histórias o checo cultivava lendo a obra de Karl May.
Práticas
Chmyz – que descreve com detalhes o temperamento e as práticas do cineasta – diz que Kozák pode ser comparado aos enciclopedistas do século 18, mas, em vez de escrever verbetes, fotografava. “Seu impulso estava em documentar. Tinha obsessão por isso. Uma vez, em minha casa, viu na televisão um documentário sobre uma onça. Ficou inquieto. Queria saber como conseguiram fazer aquilo sem serem atacados. Acho que ele ficou no Brasil por causa da exuberância do país. O país o fascinava.”
A antropóloga Maria Fernanda percebe Kozák como um legítimo homem do século 19. Ele falava checo, alemão, inglês e português. Escrevia, fotografava, filmava. “Mas penso que ele se via como um ilustrador. Foi ao conhecer ilustrações europeias que se encantou com os índios”, pontua a pesquisadora.
Para o fotógrafo Paulo Koehler, Kozák “era um antropólogo sem carteirinha”. Sua opinião é baseada em um fato corrente entre os pesquisadores. No afã de registrar o cotidiano dos índios, montava cenas, produzindo materiais e restaurando objetos quebrados, uma de suas habilidades. A prática é reprovável no meio científico. Para o viajante – que previa o desaparecimento das culturas que visitava não.
Em exposição
“Vladimir Kozák, o olhar de um viajante” e “Um olhar feminino sobre a natureza do Paraná: Karla Kozák”.
Local: Museu Paranaense (Rua Kellers, 289, São Francisco)
Quando: de 3ª a 6ª das 9 às 17 horas; sábado e domingo das 11 às 15 horas.
Informações: (41) 3304 3300.
“Vladimir Kozák: fotógrafo”.
Local: Memorial de Curitiba (Largo da Ordem).
Quando: até 15 de julho. Horário comercial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário