Crianças da Escola Municipal Maria de Lourdes Pegoraro, no Cajuru, leem “livro mural” a caminho da sala de aula
EDUCAÇÃOO professor que sabe dos livros
Movimento nacional de formação de agentes de leitura ganha força em Curitiba e mexe com a rotina de escolas da rede pública municipal.
Dias atrás, a professora Shirley Pijak, 58 anos, que atua no Centro Municipal de Educação Integral Érico Veríssimo, no bairro Alto Boqueirão, ouviu de um aluno a pergunta que esperava há pelo menos uma década: “A senhora é a Shirley da biblioteca, né?” Sim, era ela. E como tantas outras educadoras que deslocaram seu posto de trabalho da sala de aula para a sala dos livros, essa veterana sempre sentiu na pele o anonimato de sua tarefa, refletida na relação com os colegas e no pouco caso dos educandos.
Henry Miléo / Gazeta do Povo
Shirley (esquerda), Juana e Ângela (direita) fazem da leitura uma diversão extraclasse
Levante das letras
Agentes dão pistas para montar um programa de leitura na escola
1. Não limite o acervo aos livros dos cestões do R$ 1,99. É preferível comprar menos títulos, desde que sejam bem ilustrados, de bons autores e capazes de despertar o desejo de ler, mesmo que inclua fila de espera. “Melhor ter uma obra disputada do que várias desprezadas”, ensina a educadora Margareth Caldas Fuchs.
2. Os livros não pertencem a uma única escola. Montar um esquema de circulação de obras entre os colégios possibilita que acervos menores não fiquem estagnados. O livro colocado em rede gera conversa e rompe o isolamentos dos leitores. “Programa de leitura só dá certo quando envolve muita gente”, explica a bibliotecária Simone Botelho.
3. Cada livro exige uma ação diferente. Um dos grandes méritos do agente é encontrar na leitura do livro uma dinâmica própria. A repetição mecânica tende a gerar expectativa baixa de leitura, afastando o leitor iniciante.
4. Não desistir jamais. Falta de tempo, de interesse ou evasivas para não revelar relação frágil com os livros costumam ser usados para resistir ao convite à leitura, em especial entre os adultos. A regra de ouro é não desistir do leitor, procurando canais de diálogo e respeitando os suportes que ele mais aprecia.
5. Não se limite ao livro. A biblioteca tem de ser um lugar onde coisas diferentes acontecem. Além das contações de histórias, vale promover exposições, debates com escritores, gincanas. Uma das escolas promoveu uma feira de vinil. “A maioria das crianças não sabia do que se tratava e adorou ver os bolachões rodando na vitrola”, conta Ângela Maria Agostinho Pereira.
6. Faça da leitura um assunto de ponta. Há dados mostrando que a leitura tem impacto na redução da violência e no aumento da riqueza, mas esse índice ainda é desprezado. É preciso lembrá-lo e integrar os programas de leitura a outros, sejam esportivos ou sociais. “Biblioteca que não se integra morre”, ensina o gestor de informação Paulo Henrique Machado, 29.
Soa absurdo, mas no Brasil a biblioteca ocupa um lugar marginal no sistema de ensino. O assunto é discutido com paixão nos círculos educacionais, mas sem grandes avanços. Ao ser identificada, Shirley suspeitou que alguma coisa tinha mudado. De lugar triste e governado, não raro, por professores ali encostados por força de perícias médicas, o espaço de leitura estaria se tornando um lugar de fato, tão importante quanto o pátio do recreio. Melhor do que isso, um lugar que tem à frente alguém preparado para motivar o trato com os livros. E de quem se sabe o nome.
O caso da “Shirley da biblioteca” não é isolado. A formação de agentes de leitura tende a se tornar uma espécie de MST das letras. Apenas no município de Curitiba, hoje, cerca de 500 educadores e técnicos administrativos da prefeitura são identificados como mediadores da leitura; e 10 mil profissionais do setor foram atingidos por programas de formação. Muitos passaram por capacitações, alguns foram a jornadas literárias, como a de Passo Fundo (RS), uns tantos se reúnem com a frequência das senhoras da capelinha. É fácil identificá-los – são ruidosos, alegres, criativos e carregam sacolas de livros para cima e para baixo, fazendo valer com o próprio braço o direito à circulação de informação.
A função que ocupam na escola, claro, ainda provoca estranheza. Entende-se de imediato o que faz um agente comunitário ou um agente de saúde. Já o “agente de leitura” pode soar aos desavisados como mais um a lhes impor tarefas. Eles têm mares a serem navegados. Mas nada se iguala às terras que têm avistado. A reportagem da Gazeta do Povo se reuniu numa escola do Cajuru com 12 profissionais de educação que abraçaram a tarefa da leitura. Eles não concordam em tudo. Mas responderam, em coro, que se sentem sim parte de uma revolução educacional – uma revolução feita a duras penas, como todas as que merecem esse nome. E com capacidade de extrapolar os muros da escola. Agente de leitura não bate cartão.
Não é exagero. O debate sobre a formação de leitores é tão antigo quanto o país. Por vias tortas, essa responsabilidade recaiu toda sobre o sistema de ensino. Mas apenas nos anos 1990, com a prova estatística de que a escola não conseguia formar leitores, os primeiros passos largos começaram a ser sentidos. Há pelo menos três marcos dessa mudança, como atesta a professora de Língua Portuguesa Margareth Caldas Fuchs, 54, gerente do Setor de Bibliotecas da prefeitura de Curitiba.
O primeiro foi o movimento de contação de histórias, impulsionado pelo programa Proler, da Biblioteca Nacional. O projeto foi responsável por romper com o silêncio de velório que reinava nas salas de leitura, devolvendo-lhe o ambiente algo teatral e divertido. O segundo marco se deve à mudança de status dos espaços de leitura, que mais e mais se munem das táticas de acolhimento e rejeitam o papel de depósito de gente e de poeira. O terceiro marco, por tabela, diz respeito à formação de agentes. “Foi-se o tempo em que ‘qualquer pessoa’ servia para a biblioteca. O agente pode surgir naturalmente, mas formá-lo é fundamental”, ilustra Tânia Maria Severino, uma das gerentes dos Faróis do Saber na capital.
Tão importante quanto mudar a cara da biblioteca, vale dizer, foi existir um grupo de entusiastas fiel à máxima do “água mole em pedra dura...” Pressão aqui e ali, esses educadores mostraram que não basta emprestar livros. Aprende-se a ler mais e melhor se a leitura for um acontecimento escolar – tanto quanto a fanfarra e a gincana. Quando isso acontece, uma leva de crianças, pela vida afora, não vai esquecer o encontro com a literatura que lhe foi preparado por gente como a Shirley, a professora que sabia dos livros.
“Qualquer papel” ganha um leitor
Desde que se tornou agente de leitura na Escola Municipal Eny Caldeira, no bairro Tingui, a professora Juana Helena Colman não vive um dia igual ao outro. São ossos do ofício. Uma das máximas que rege esses profissionais é que cada livro e cada leitor exigem uma dinâmica diferente. Não adianta aplicar regras gerais – a leitura é um universo sensível, íntimo e pessoal.
Uma das passagens que Juana adora contar é a do pai de uma aluna, um estrangeiro, que resistia em entrar na biblioteca do colégio, emprestar um livro e arrastar pelo exemplo. Ela usou de todo o seu latim, e nada, até saber que a terra natal do sujeito sofrera um terremoto. Na célebre hora da saída, mostrou-lhe uma reportagem. “Olhe só o que aconteceu com sua cidade!” Foi o que bastou para fisgá-lo. Moral da história: “Qualquer papel com algo escrito pode ser usado para atrair um leitor”, resume a professora-agente.
Como brincam as amigas, “Juana é de morte”. Ninguém mais se espanta quando coloca livros para fora da biblioteca, pendurados num varal, rompendo com a sisudez. A professora Ângela Maria Agostinho Pereira, 60, segue atrás. Ela trabalha há nove anos na Escola Municipal Maria de Lourdes Pegoraro, no Cajuru, e sua tática é promover cada livro novo que entra para o acervo, tornando-o desejado pelas crianças.
Foi assim com a obra Guilherme Augusto de Araújo Fernandes, de Mem Fox e Julie Vivas, que trata de uma mulher idosa envolta com a perda da memória e às voltas com uma caixa cheia de objetos que a ajudam recordar o que passou. Pois o “lançamento” do livro na sala de leitura da escola incluiu a contação da história e uma caixa com recordações dos frequentadores. Caso alguém não queira participar dessas performances, sem problema: os corredores da escola de Ângela estão forrados de livros, presos à parede, página por página.
Funciona. Indo em fila para a sala de aula, nada de ficar olhando para o cocuruto do coleguinha. Os olhos ficam é pregados no corredor, acompanhando a sequência até chegar à sala de aula. É simples como isso. Mas demorou quase um século para os livros migrarem para fora das bibliotecas escolares, mostrando que se estiverem livres e soltos não deixam ninguém indiferente.
VIDA E CIDADANIA | 2:11
COM A PALAVRA, OS AGENTES
Confira depoimentos de alguns dos agentes de leitura do município.
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