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sábado, 21 de abril de 2012

Uma literatura em busca de espaço


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OS AUTORES DE LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

Com obras atreladas a um certo estigma de exotismo, escritores brasileiros portugueses, angolanos e moçambicanos tentam conquistar igualdade no mercado editorial internacional.

Num momento de ascensão global do Brasil, acreditam os otimistas que a língua portuguesa possa vir a ganhar terreno como língua de cultura. E, com ela, as literaturas em português: a nossa, brasileira, mas também as africanas e a portuguesa.
De fato, o desafio fundamental de quem aqui, na África lusa ou em Portugal escreva ficção e queira ser lido sempre foi este: a língua em si não tem projeção internacional – e isso, nos desníveis geopolíticos mais amplos, é particularmente verdadeiro para as ex-colônias portuguesas, elas próprias periféricas para além da língua. Nem um poeta como Fernando Pessoa – com pretensões de universalidade, escrevendo também em inglês e oriundo da metrópole, ou seja, um europeu – chegou a obter tal projeção ou, traduzido, recebeu a devida atenção nos mundos de língua inglesa, francesa, alemã, espanhola, onde há mercados editoriais mais desenvolvidos.
Debate
Escritores reivindicam igualdade de condições
Novíssima autora brasileira (embora nascida no Chile), Carola Saavedra, participando nesta semana, em Curitiba, de um evento que discutiu exatamente a língua portuguesa no mundo literário, foi categórica: “Não deveríamos ter obrigação, em nossos romances, nem de abordar o muito específico [do Brasil], nem, por outro lado, de escrever sobre o estrangeiro”. Arredia à cobrança por “exotismo”, mais cosmopolita, a geração de Carola tampouco se recusa completamente a falar do que é brasileiro por excelência. “Mas”, a autora fez a ressalva durante o debate, “escrever é sempre se colocar no lugar do outro.”
Seu companheiro de mesa-redonda, na ocasião, o angolano José Eduardo Agualusa – um dos autores africanos de língua portuguesa com maior circulação internacional – disparou: “Os autores da nossa língua há muito reivindicam igualdade de condições com o escritor europeu. Quando este escreve sobre a Patagônia, é porque é aberto ao mundo; já um africano escrevendo sobre Londres é alienado”.
Carola, em texto recente no jornal Rascunho, do qual é colunista, vai além na questão da identidade em literatura: “Afinal, que interesse poderia haver em um autor estrangeiro se este não traz para sua literatura algo de sua estrangeiridade? Qual é o interesse num autor latino-americano que escreve sobre a Rússia, coisa que seria muito mais bem realizada por um russo?” Curiosamente, um brasileiro, Bernardo Carvalho, fez o que sugere (consciente ou inconscientemente) a autora, um “romance russo”, e com notável competência.
O mesmo Rascunho, em seu número de abril, pediu a oito críticos que apontassem o que veem como “marcas da literatura brasileira”. Houve quem (Luís Augusto Fischer) elogiasse o fato de “os pobres, os de baixo” finalmente, de duas gerações de romancistas para cá, estarem dando as caras em nossos enredos de ficção, e ainda quem (Miguel Sanches Neto) pedisse menos “culto à linguagem de exceção”, ou seja, romances brasileiros que contêm histórias mais próximas de certa “leveza de viver”, na expressão de Sanches Neto, em vez de falar sempre para iniciados.
Mas curiosa, mesmo, soa a reclamação do crítico e escritor Vinícius Jatobá: “A sensação de fraqueza de nossa literatura se deve muito a [...] estarmos buscando em um gênero tão impróprio à nossa tradição, uma redenção cuja energia sublime alcançaríamos na brevidade [do conto, da crônica]”. Ora, e que “gênero tão impróprio” seria esse? Jatobá esclarece: “Nunca se publicou tantos romances e nunca foram escritos tantos romances. Mas a pergunta que fica: está se produzindo satisfação?”
Por que isso acontece?
É preciso descartar, de imediato, o lugar-comum de que o problema se deva a alguma dificuldade intrínseca à língua, ou à sua tradução – a noção equivocada de que um Guimarães Rosa, por exemplo, seja “intraduzível”. Por que, então, autores que inovaram tanto quanto Rosa em termos de linguagem, só que em inglês, continuam a ter acolhida mundialmente, nas mais diversas línguas para as quais são traduzidos? E não custa lembrar: José Saramago é até hoje o único Nobel da língua – o que o tornou relativamente conhecido e lido mundo afora – mesmo tendo escrito em “português difícil”...
Por outro lado, tem sido uma contingência histórica para quem escreve narrativas em português, e particularmente para os brasileiros, que nosso atrativo único e exclusivo seja um certo exotismo. Tiveram de lidar com esse estigma autores como Jorge Amado e mesmo Guimarães Rosa, cada um à sua maneira; e o rótulo acaba por grudar, atualmente, em escritores africanos “tipo exportação”, como o moçambicano Mia Couto ou o angolano José Eduardo Agualusa – às vezes “exóticos” até para nós, brasileiros, ainda que falantes da mesma língua.

Presos a um instinto de nacionalidade
Historicamente, os romancistas brasileiros e africanos, em particular, enfrentam uma segunda dificuldade.
Gênero literário por definição enraizado no mundo urbano e cosmopolita – sobretudo no tipo de visão de mundo nele presente (não se trata apenas do “cenário” das histórias) –, não deveria haver no romance nenhu­ma obrigação de representar a coletividade, a tribo. E, no entanto, a partir do século 19, quando o romance já estava consolidado na Europa, os nacionalismos tão comuns àquele período terminaram por dar vazão, no Brasil inclusive, a exemplares do gênero que tematizavam justamente a coletividade nacional – narrativas muitas vezes mal-disfarçadas de romances ou, ao menos, vistas no estrangeiro preponderantemente como comentário antropológico sobre certos povos, ora, “exóticos”.
Muito cedo, num texto de1873, Machado de Assis já identificava essa tendência: “Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe, logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há como negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. [...] Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem de duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo”, escreveu Machado na imprensa da época, em texto intitulado “Notícia da Atual Literatura Brasileira – Instinto de Nacionalidade”, recentemente reeditado em O Papel e o Jornal (Companhia das Letras).
Algumas gerações adiante, conforme a previsão de Machado, Jorge Amado estreava com O País do Carnaval (1931) – que, desde o título, não poderia ser mais claro em suas intenções. “Entre o azul do céu e o verde do mar, o navio ruma o verde-amarelo pátrio”, assim se inicia a história de um expatriado baiano, formado em Paris, que regressa ao Brasil para acabar desiludido com a terra natal.
Mas Machado, apesar de inicialmente contemporizar, e até mostrar certo entusiasmo por essa literatura, diríamos, “nacionalista”, diferenciou-se, ele próprio, de seus contemporâneos nesse aspecto – daí quem sabe, por seu universalismo, ter envelhecido melhor. E já via desde sempre certo esquematismo de que lançavam mão os romancistas seus contemporâneos: “O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques de sentimento, quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do nosso povo. [...] O espetáculo da natureza, quando o assunto o pede, ocupa notável lugar no romance, e dá páginas animadas e pitorescas”.
Por fim, em tom contido, mas indubitavelmente crítico, observa: “Há boas páginas, como digo, e creio até que um grande amor por este recurso da descrição, excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidade essenciais”.
Jorge Amado até costuma ser elogiado por essas outras “qualidades essenciais”, mas geralmente é mais admirado porque “[...] beira o épico, com todos os ingredientes que alimentam o gênero desde Homero: o heroísmo, a coragem, a abnegação, as venturas e desventuras amorosas, as matanças, as traições, os estupros, a ferocidade da ambição e ‘a vil tristeza’. Mas sem esquecer o lirismo com que acarinha e adoça muitos de seus personagens, sobretudo as mulheres e os pobres”. O trecho é do prefácio, assinado por Alberto da Costa e Silva, de Essencial Jorge Amado (Companhia das Letras), coletânea de excertos dos principais romances do autor que este ano, se estivesse vivo, chegaria a seu centenário. Abrindo o volume ao acaso, encontra-se mesmo o épico a cada página – o que apenas reforça o paradoxo de, no caso de Jorge Amado, continuarmos a ter diante dos olhos, quase que à revelia deste nosso maior contador de histórias, um grande romancista.
Reinvenção possível
O fato é que o romance – esse gênero que, afinal, move a literatura contemporânea – não chegou, realmente, a se tornar um vetor da cultura nacional, uma forma de expressão que nos represente, não exótica, mas universalmente. Para começar porque não houve, historicamente, a formação de um leitorado de romances no Brasil.
Para alguns, aliás, não é que tenhamos chegado atrasados a essa etapa do desenvolvimento nacional: na verdade, garantem, nunca chegamos a experimentá-la, “queimando”, como se diz, tal etapa. Atropelados, primeiro, pela era do rádio (nossos romances –folhetins, antepassados do romance propriamente dito, foram as rádionovelas), depois pela penetração rápida da televisão (e das telenovelas...), jamais conseguimos forjar um público leitor de massa.
Não é coincidência que o próprio Jorge Amado tenha consolidado todo um universo ficcional junto ao público não pelos livros, e sim, em muitos casos, nas adaptações de seus romances para a tevê e o cinema.
Mas e hoje, estamos escrevendo para o mundo? Quem são os leitores internacionais de portugueses, angolanos, moçambicanos e, em particular, dos autores brasileiros? Incentivos para a tradução de nossos escritores lá fora, a exemplo de um recente programa de bolsas para tradutores, patrocinado pela Biblioteca Nacional, ou homenagens ao país em feiras internacionais do livro, como a prevista para a Feira de Frankfurt de 2013, mudam o cenário?
E finalmente: será possível uma reinvenção da literatura em língua portuguesa, em especial da literatura brasileira, mundo afora – como, aliás, algum dia aconteceu com o futebol e o estilo brasileiro, “único”, de jogar, ou ainda, recentemente, com um presidente que virou marca global? Ou, para isso acontecer com nossos autores, é preciso muito mais do que pedaladas em campo e ousadia diplomática?
Nos demais textos deste caderno, críticos, especialistas e escritores tentam responder a esses dilemas – e, salvo engano, nunca estiveram tão otimistas.

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