Domingos Stocchero no local onde nasceu Tranqueira, uma invernada para animais trazidos por tropeiros
CAUSO METROPOLITANO
A população bem que tentou trocar o nome do local. Mas mudou de ideia ao lembrar sua importância no passado
29/04/2012 | 00:06José Carlos Fernandes, com colaboração de Ana Lúcia Superchinski
Marcelo Andrade / Gazeta do Povo
O coveiro Joel Lima e o túmulo do imigrante inglês: histórias imaginadas
O avião, a maldição e o coveiro
No filme Narradores de Javé, a cineasta Eliane Caffé conta a história de um município do sertão ameaçado de desaparecer para dar lugar a uma barragem. A única chance de o lugar ser poupado é provar que tem algum patrimônio. É quando os moradores descobrem que restam apenas narrativas orais, mais engraçadas do que épicas. Há semelhanças entre Javé e Tranqueira. Sem estar em perigo, restou ao antigo distrito do Paraná as memórias de seus moradores. Confira:
Nos céus da Tranqueira
Há pouco mais de quatro anos, ao assumir a direção da Escola Municipal Bortolo Lovato, Vera Von Kriger se deu conta da rejeição que as 320 crianças do ensino básico sentiam pelo nome Tranqueira. “Para elas, corresponde a coisa velha e antiga.” Chamou os colegas de trabalho e nasceu um projeto: as professoras fizeram os alunos entrevistarem os veteranos do bairro e recolherem fotografias antigas. Do esforço, e com o mecenato da ‘Vani da papelaria’, surgiram dois livrinhos – Curiosidades e mitos do bairro Tranqueira e Tranquei Tranqueira no baú da história. São pródigos em lendas e causos. Numa das passagens mais divertidas, as crianças contam o dia de 1971 em que um temporal fez um avião pousar forçado nas terras de Tranqueira. O piloto saiu ileso. De certo não esqueceu o nome do lugar que salvou sua vida.
Pequenas maldições
Tal e qual Rio Branco do Sul e algumas outras cidades do Paraná, diz-se que um padre enfurecido rogou praga contra o distrito de Tranqueira. Motivo: viu da portinha da matriz de Santo Antônio que a piazada jogava bola em vez de ir à missa. Pois nada mais nasceria nos campos de Tranqueira. O administrador de empresas Sandro Miguel Mendes, 45 anos, não esquece o esforço da comunidade para fazer as pazes com o Divino: promoveu-se uma ruidosa Eucaristia no campinho de pelada. Deu certo. Sandro, a propósito, figura entre os entusiastas pelo bairro, estudou na Escola Isolada de Tranqueira, frequentou a Sociedade Beneficente Tranqueira e, como diz ele, comeu maçãs escondido no quintal do francês Jean Geneviève. Era um ritual.
Histórias do além
O Cemitério do Distrito de Tranqueira poderia figurar na obra de Dias Gomes. Há seis meses vive no local o cachorro Tigrão, velando seu dono ali sepultado. O cão não é a única atração. Há pouco mais de um ano, o coveiro Joel Aparecido Santos Lima, 33 anos, rompeu com a sisudez do endereço e se tornou popular no bairro. Ele adora ler as lápides e imaginar quem seriam aquelas Anselmas e Marias Franciscas que jazem em paz. Em alguns casos, não se intimida em contar o que pensou. Na versão de Joel, por exemplo, o inglês Jorge Kendrick, morto em 12 de dezembro de 1902, seria um nobre que viveu seus últimos dias em Tranqueira. A propósito, o cemitério chegou a ser vendido pela prefeitura, para quitar dívidas previdenciárias. Em 2005, foi novamente comprado pela administração municipal por R$ 811.123,04, dividido em 420 meses, mais a inflação. (JCF)
“Mas ganhou Tranqueira por 700% dos votos”, inflaciona o veterano Domingos Natal Stocchero, 85 anos, conhecido como seu Mingo, ao falar do escrutínio. Foi histórico. Na época, a eleição fez a velha-guarda sair do sossego de seus sítios e impedir o que julgavam um desaforo. Além dos Stocchero, gente dos Antoniacomi, Vanelli, Cavalli, Gabardo, Chevônica e Chimelli, entre outros, ergueu a voz em defesa do nome oficial, alegando que a mudança equivaleria a desdenhar das gloriosas origens tropeiras de Tranqueira.
Só faltou o escritor Dalton Trevisan. Tido como o maior escritor brasileiro vivo, Dalton tem suas origens em Tranqueira. Sua mãe, Catarina, era de lá e ele chegou a citar a localidade nos textos de início de carreira, hoje renegados.
Pois os veteranos não só não precisaram do Vampiro como convenceram os indecisos e mexeram com os brios da população – hoje estimada em 15 mil habitantes –, dando início à fase “eu amo Tranqueira” (leia nesta página). Por ironia, o nome que causou uma pequena batalha eleitoral é um dos últimos patrimônios da antiga colônia: sobrou quase nada do entreposto comercial e dormitório de tropeiros que vinham do Vale do Ribeira rumo a Curitiba, conduzindo rebanhos, nos idos do século 19.
Perdas
Tranqueira fica a 21 quilômetros de Curitiba e a 10 quilômetros de Almirante Tamandaré, da qual se tornou um bairro. Está em cima do Aquífero Karst. É cortada ao meio pela Rodovia dos Minérios, que lhe presenteia em tempo integral com o barulho dos caminhões e a poeira branca que sobe das carrocerias. Para os motoristas, talvez não passe de um lugarejo de beira de estrada, com algum comércio em roda e uma bela paisagem de pinheiros. Não se deve culpá-los.
A centenária igrejinha de Santo Antônio ruiu em 1994 e deu lugar a um templo como todos outros. A estação de trem “Tranqueira”, a exemplo de outras da RFFSA, ficou na saudade: virou abrigo de ambulantes e acabou incendiada em 2006. A antiga pousada onde paravam os tropeiros foi ao chão e o terreno abriga agora uma unidade de saúde. A Sociedade Beneficente Tranqueira agoniza.
O casarão colonial dos Stocchero, na beira da estrada, virou lenha e abriu espaço para um posto de gasolina. Do moinho dos bijus, nem farelo. Os primeiros fornos para queimar pedra calcária tiveram o mesmo destino, deixando o distrito cada vez mais pelado de memórias. Nem o Cemitério de Tranqueira escapou à sina. Havia ali túmulos da época em que o Paraná começara a existir, mas nenhum deles guarda resquícios da arquitetura original.
Não é dos males o pior. O marco-zero de Tranqueira – uma área de invernada em que os animais conduzidos pela tropa ficavam protegidos – se resume agora a um pálido olho d’água, cercado de mato. Identificá-lo é tarefa possível apenas para veteranos como seu Mingo, que cresceu ouvindo falar que foi naquele pedaço de terra que tudo começou.
A versão mais aceita é que quando os tropeiros chegavam para o pernoite, atravessavam o Rio Barigui com água até as canelas e guardavam atrás das cercas as levas de gado, mulas, porcos e até de perus. Para se certificar de que os peões tinham feito bem o serviço, um capataz berrava, causando eco nos vales de Almirante: “Fechou a tranqueira?” Pois Tranqueira ficou.
Caso algum tranqueirense decida “imaginar como era”, só lhes resta olhar para a casa de lambrequins do francês Jean Geneviève, um dos tantos estrangeiros que escolheram o distrito para viver e morrer. Ou para a Fábrica da Banha do polonês Stanislau Mikala, fechada pela Vigilância Sanitária na década de 1980, mas as letras em relevo na fachada estão tal e qual. Vale uma foto na frente, com legenda: “Estive em Tranqueira e lembrei-me de ti”. Não duvide de que alguém o faça.
Em páginas
Almirante Tamandaré é tema de duas pesquisas históricas
Até o final deste ano, Almirante Tamandaré vai ganhar duas publicações sobre a história do município. A primeira vem de uma pesquisa inacabada, desenvolvida pelo poeta e historiador diletante Harley Clóvis Stocchero, morto em 2005. Os Stocchero figuram entre os clãs tradicionais do antigo distrito de Tranqueira, o que garante na obra destaque para a localidade. Familiares se encarregaram da finalização do projeto, intitulado Raízes Históricas de Almirante Tamandaré.
O segundo livro – Município de Almirante Tamandaré-PR: uma história em constante construção, de autoria do historiador Jorge Antônio de Queiroz e Silva e da jornalista e antropóloga Zélia Maria Bonamigo – é uma obra de fôlego, com cerca de 700 páginas, resultado de quatro anos de garimpagem e cerca de 60 entrevistas em profundidade. Enquanto Harley Stocchero se baseia na documentação oficial disponível na cidade, a dupla Jorge e Zélia investe também nas narrativas orais – tendo inclusive ouvido os veteranos de Tranqueira.
Origens
As origens de Tamandaré remontam a meados do século 19, quando se chamava Freguesia de Pacatuba e, posteriormente, Vila Conceição do Cercado. O nome atual coincide com o início da República. O que mais atrai os historiadores é a posição da cidade no vaivém dos tropeiros, vindos da Colônia Açungui, no Vale do Ribeira. Ao contrário do que se propala, a relação com o tropeirismo gaúcho se deu de forma pouco intensa.
Uma das descobertas dos pesquisadores é que os trajetos pelos interiores das colônias eram mais variados do que se afirmava até então, derrubando a tese de que a região era isolada. Um dos caminhos levava a onde está hoje o bairro Ahú, em Curitiba. “Havia grande procura de porcos para engorda, o que gerava ligações entre um ponto e outro da região. Não eram roteiros oficiais”, diz Zélia.
VIDA E CIDADANIA | 3:59
Um lugar chamado Tranqueira
Conheça a história de Tranqueira, bairro de Almirante Tamandaré, que já foi passagem de tropeiros do Paraná.
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