Osvalter Urbinati Filho
O movimento feminista mudou, mas a desigualdade entre homens e mulheres, independentemente da orientação sexual, Das críticas sociais às mulheres ameaçadoras gigantes
O cineasta norte-americano George Romero teve sua capacidade de crítico social relegada ao esquecimento na maior parte da carreira. Isso porque o que o tornou famoso não foram os comentários ácidos com relação aos conflitos entre negros e brancos e homens e mulheres, mas seus filmes de zumbis.
Oriundo do cinema independente, Romero construiu – ao longo de obras como A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Despertar dos Mortos (1978) – uma representação social peculiar para personagens femininas em situações como a dominação do mundo por cadáveres famintos. Suas narrativas sempre mostraram as mulheres como mais racionais e fortes que os homens.
Nem todas as representações femininas nos filmes de horror, no entanto, são como as do cineasta. Em O Ataque da Mulher de 15 Metros (1958), por exemplo, o medo do desconhecido – que na década de 1950 era retratado por um monstro alienígena – ganha as feições de uma bela Allison Hayes. A personagem gigante do filme destrói cidades pacatas dos Estados Unidos e pode, facilmente, ser considerada como o cúmulo da aversão à independência feminina.
De uma maneira geral, estes exemplos dão pistas de como as representações de gênero funcionam dentro dos produtos culturais. No caso específico das mulheres, elas podem ser alegorias de ameaças – chegando ao exagero de personagens como a fêmea fatal, cuja melhor representante é a atriz Sharon Stone em Instinto Selvagem (1992) – ou de fortaleza, como nos filmes de Romero.
Para a coordenadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher da UFBA, Márcia Santos Macedo, existe uma dupla influência nas representações de gênero na cultura. “Sempre vemos famílias chefiadas por homens, novelas que terminam com casamento, mas essas imagens bebem na ideologia da própria sociedade.”
De acordo com Márcia, os filmes que mais funcionam como canais mantenedores das relações conservadoras entre os sexos são as comédias românticas. “Há uma obra nacional chamada Avassaladoras, que faz um desserviço à imagem feminina. As personagens são retratadas como mulheres bem-sucedidas, mas cuja meta de vida é encontrar um homem.”
Diversidade sexual
A homossexualidade também apresenta suas peculiaridades nessas representações de gênero nos produtos culturais. Elas podem ser evidentes manifestações contra a repressão sexual – como O Segredo de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee – ou suaves críticas, como os olhares de desejo trocados pelos soldados heteronormativos (ligados ao estereótipo masculino)de Guerra ao Terror (2010), dirigido por Kathryn Bigelow.
No campo da literatura, escritores como Oscar Wilde, Thomas Mann e Marcel Proust chegaram a utilizar relações homossexuais em suas narrativas. O problema é que, como conta o professor Emerson da Cruz Inácio, da USP, isso não fez com que as pessoas aceitassem a essa orientação sexual facilmente. “É uma contradição, porque todos liam esses autores, mas dentro da sociedade a situação sempre foi muito complicada.” E ainda é.
No cinema
Veja alguns exemplos de visões sobre as mulheres que foram parar nas telas de cinema:
Rejeição
Em O Ataque da Mulher de 15 Metros (1958), uma mulher gigante ataca uma cidade pacata dos Estados Unidos. O filme pode ser considerado o cúmulo da rejeição à independência feminina.
Em busca de homens
No longa brasileiro Avassaladoras (2002), um grupo de mulheres independentes e bem-sucedidas são representadas como incompletas sem a companhia de um homem. O tema é comum em outras comédias românticas.
Fêmea fatal
A fêmea fatal interpretada por Sharon Stone em Instinto Selvagem (1992) é o estereótipo da mulher perigosa. O sexo funciona com um objeto de poder na obra, em que a mulher seduz os homens para controlá-los e matá-los.
Força feminina
A Noite dos Mortos Vivos (1968) é o primeiro filme em que o diretor George Romero representa um personagem feminino. Nos filmes seguintes, ele vai criar uma imagem de mulher que é fortalecida diante da irracionalidade do homem.
Sutileza
A diretora Kathryn Bigelow apresenta elementos de afeto entre homens com sutileza no filme Guerra ao Terror (2010). A cena em que os soldados brincam entre si é um momento raro em filmes de guerra.
Um sutiã em chamas é o maior estereótipo do movimento feminista. A imagem remonta a 1968, ano de explosão de debates sociais no mundo todo. Em Atlantic City, nos Estados Unidos, um grupo de 400 mulheres foi às ruas protestar contra a realização de um concurso de beleza. Na época, a queima simbólica de lingeries (que nunca aconteceu de verdade) representou a liberdade de padrões prisionais de beleza impostos ao sexo feminino.
A exposição do movimento na mídia acabou criando o clichê que, volta e meia, aparece em produtos culturais, como novelas e filmes. Um exemplo é a cena em que as princesas na animação Shrek Terceiro (2007) acendem um sutiã como grito de guerra. O ato se tornou sinônimo de um tipo de luta que nem sempre é a enfrentada pelas mulheres no dia a dia.
Nas últimas semanas, os jornais estamparam diversas situações ligadas ao movimento feminista que estão bem distantes das que geraram as roupas íntimas incendiadas há quatro décadas. O caso do “Manual de Sobrevivência do Calouro”, editado pelos alunos de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que faz referência a uma “obrigação sexual” das calouras com os veteranos, é um exemplo. A liberação do aborto dos anencéfalos, decidida no Supremo Tribunal Federal nesta semana, é outro.
A coordenadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Márcia Santos Macedo, revela que existem inúmeras outras causas enfrentadas no cotidiano do sexo feminino. “As mulheres ainda ganham, em média, 30% menos que os homens. Há preconceito contra solteiras – sempre imaginadas como destinadas ao casamento – e as revistas femininas estão aí para provar que não estamos livres dos padrões de beleza”, afirma.
Mudança
Questões como as citadas por Márcia sempre foram reinvindicações frequentes entre militantes dos movimentos feministas. A diferença é que, desde a década de 1960, muita coisa mudou. Especialmente no modo de pensar as soluções para a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade.
Para a professora Marília Gomes de Carvalho, que faz parte do grupo de pesquisa de gênero e tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), o fato de as mulheres ocuparem mais espaço nos mercados de trabalho e nos ambientes acadêmicos provocou um novo tipo de reflexão na interação entre os sexos. “Desde os anos 1980, alguns grupos de feministas deixaram de pensar o papel da mulher na sociedade, para pensar como são construídas as diferenças entre homens e mulheres”, conta.
Esse novo modelo de reflexão, que reconstruiu a dinâmica dos estudos sobre o papel das mulheres na sociedade, acabou ampliando a situação para outros agentes das relações de gênero. “As questões masculinas também passaram a ser levadas em conta, especialmente no âmbito da diversidade sexual”, diz Marília.
Quando a sexualidade passou a ser discutida como parte da temática de gênero, as distinções binárias entre homens e mulheres começaram a ser questionadas. “Masculino e feminino não se opõem, pois as circunstâncias sociais que levam à orientação sexual são muito mais complexas”, explica o professor de literatura Emerson da Cruz Inácio, da Universidade de São Paulo (USP).
Um exemplo dado por Inácio para a rejeição de padrões sexuais pré-definidos pela sociedade são as escolhas de roupas infantis. De acordo com ele, ao determinar que meninas devam usar rosa e meninos, azul, os pais criam mecanismos de repressão da sexualidade. “Cada um deve se sentir à vontade com a cor que quiser. Você não pode definir a orientação de alguém porque, previamente, ela pode não ser o que os outros esperam ou impõem.”
Diversidade
Essa discussão sobre diversidade sexual nasce das cisões do movimento feminista ainda na década de 1960. No período, a incendiária militância em prol das minorias (como é o caso do movimento negro) levou algumas ativistas de entidades como a Women’s Liberation Movement – responsável pela queima de sutiãs em 68 – a questionar suas próprias peculiaridades.
As feministas negras começaram a discutir se suas lutas eram iguais às das mulheres brancas. O mesmo fizeram as lésbicas, cujas causas não eram prioridade na agenda do movimento. Como consequência disso, as outras orientações sexuais acabaram entrando na agenda de debates e criando militâncias independentes ao longo dos anos.
De acordo com a professora Marília Carvalho, da UTFPR, esta segmentação do movimento de mulheres também gerou impacto nos estudos de gênero. “As pesquisas relacionais passaram a levar em conta as diferentes situações que envolvem pessoas do sexo feminino, como escolaridade, raça e classe social.”
Um exemplo de casos apontados por Marília é a exploração de empregadas domésticas por suas empregadoras. “As dinâmicas de poder não são exclusivas do homem. As mulheres também podem abusar de suas vantagens econômicas e sociais”, explica.
Por pluralidade nas causas femininas, Márcia Macedo, da UNB, defende que a ideia de luta da mulher – que ainda concentra boa parte dos problemas relacionados à opressão dos gêneros – precisa ser modificada. “Não nos referimos mais ao conceito de mulher, mas de mulheres. Somos representantes de feminismos.”
Portanto, quando voltarmos a imaginar sutiãs queimados em defesa das causas feministas, não podemos deixar de considerar que o quadro mudou desde a década de 1960. Hoje, não existem apenas lingeries em chamas contra padrões de beleza, mas uma grande diversidade de roupas íntimas usadas por homens e mulheres, que buscam direitos equivalentes dentro da sociedade.
Gênero rende pesquisas em diversas áreas
A cada dois anos, centenas de estudantes e professores se reúnem em Florianópolis para discutir temas relacionados às diferenças entre os gêneros. O encontro, que acontece na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), chama-se “Fazendo Gênero”.
O seminário, que apresenta as produções acadêmicas relacionadas à área, é apenas um dos inúmeros espaços de debate sobre as construções sociais relacionadas à sexualidade no Brasil. Como campo de conhecimento, essas pesquisas universitárias são, evidentemente, descendentes diretas dos estudos feministas.
Trabalhos como os realizados no Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), começaram nos anos 1980. A influência foi a inserção de obras de autoras norte-americanas como Joan Scott e Judith Butler nos ambientes acadêmicos brasileiros. Na época, apenas o aspecto relacional entre homens e mulheres era estudado. A diversidade sexual acabou surgindo como objeto de análise apenas no fim dos anos 1990.
A herança do momento em que os estudos sobre a mulher ainda dominavam o campo do gênero continua no nome do Neim, como explica a professora Márcia Santos Macedo. “A maioria dos grupos de pesquisa sobre o tema hoje são grupos de gênero. Nós mantivemos a ‘mulher’ no título do núcleo porque estamos ligados à história destes estudos”, conta.
O gênero como linha de pesquisa é tão forte na UFBA que a instituição criou uma graduação e um programa de pós (que tem o primeiro doutorado em gênero da América Latina) voltado para o campo da diversidade sexual. O objetivo, segundo Márcia, é a formação de profissionais que possam lidar com o tema na esfera pública. “Buscamos levar para o mercado pessoas capacitadas para lidar com políticas de inclusão e que respeitem a diversidade de gênero.”
O aspecto interdisciplinar do núcleo baiano, e do próprio gênero como área de conhecimento, permite que diversos profissionais estudem a temática. Logo, advogados, antropólogos, historiadores, psicólogos e inúmeros outros pesquisadores das Ciências Humanas acabam trabalhando com este tipo de pesquisa.
Paraná
Em Curitiba, as pesquisas realizadas nos núcleos de gênero da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR) são um exemplo desse aspecto interdisciplinar. Saúde, educação, violência e representação na mídia, entre outros, são áreas relacionadas ao papel da mulher, dos homossexuais e do homem na sociedade.
No Núcleo de Gênero e Tecnologia da UTFPR, muitas pesquisas buscam mostrar de que forma as mulheres se inserem no mercado de trabalho. Esses estudos já mostram resultados e análises positivas, de acordo com a professora Marília Gomes de Carvalho. “Notamos que a presença do sexo feminino dentro de empresas de tecnologia é muito maior nos últimos 15 anos. E eram espaços dominados apenas por homens.”
A professora de Ciências Sociais Marlene Tamanini, da UFPR, diz acreditar que as pesquisas acadêmicas relacionadas ao gênero causam um profundo impacto na sociedade. “São estudos que contribuem para mudar a forma de pensar das pessoas. Além de criar políticas públicas como as debatidas em eventos como a Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, do governo federal.”
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