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sábado, 10 de novembro de 2012

É possível que eu esteja sempre escrevendo capítulos de um único livro


Fotos: Daniel Castellano /
LITERATURA

“É possível que eu esteja sempre escrevendo capítulos de um único livro”.

Nunca se falou tanto em literatura africana de língua portuguesa como agora. A boa tradição linguística da metrópole misturou-se ao pensamento poético e metafórico de suas colônias e criou uma escrita que, embora ecoe na tradição oral e informal brasileira, guarda em si um misticismo e exotismo próprios e começa a se mostrar para o mundo como os primeiros retratos interiores de um continente até então retratado por olhares estrangeiros. No meio dessa nova safra de autores, que tem como expoentes os angolanos José Eduardo Agualusa, Ondjaki, José Luandino Vieira e Pepetela, está Mia Couto, escritor moçambicano de 57 anos, filhos de pais portugueses e biólogo de formação.
Participante ativo da luta pela independência de Moçambique, Mia Couto agora preocupa-se em inserir o pequeno país africano no mundo literário, por meio de pouco mais de duas dezenas de livros publicados, sendo o mais recente o romance A Confissão da Leoa, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. “Às vezes, quando estou indo viajar, a pessoa que varre a rua ou trabalha no aeroporto para e diz-me: ‘represente bem nosso país’”, conta o escritor em uma entrevista concedida na Livraria Arte e Letra, em Curitiba, dando uma ideia de sua importância para a cultura de seu povo. O escritor esteve na cidade na última quinta-feira, participando do projeto Conversa Entre Amigos, e aproveitou um intervalo no café da livraria para falar sobre seu último romance, suas preocupações como escritor e a imagem africana refletida em seus livros.

O seu último livro, A Confissão da Leoa, é o primeiro gerado a partir de um fato de extrema realidade. Entretanto, o senhor prescindiu dos fatos em favor de uma construção literária-poética. Em que sentido a realidade serve à ficção?
Naquele caso específico, eu tinha que fugir daqueles fatos, e não como uma estratégia literária, mas porque eles haviam sido tão irreais e tão chocantes que eu precisava criar distância. Mas como estratégia literária também, eu tinha que escapar daquele estereótipo de uma certa África onde acontece aventuras de caças. Eu precisava colocar no centro da narrativa as pessoas e as histórias que elas criavam a partir daqueles fatos. Então eu tive que me deslocar mais do que qualquer outro livro, fugir da realidade. De qualquer maneira, respondendo à tua pergunta, na relação que eu tenho com uma certa África, os fatos me chegam quase como argumentos. A fronteira entre a realidade e o imaginário é muito diluída. Ninguém quer saber se foi verdade ou não porque tudo pode ser verdade.
Essa África foi pintada pelas artes europeias muito antes que os africanos exportassem para o mundo sua própria visão sobre a terra. Essa construção exótica e mística ainda tem poder sobre a África?
Acho que os africanos acabaram por assimilar esse olhar estranho na própria definição do que é a África, do que eles são, e olham por essa via emprestada de um olhar europeu. A grande libertação começou por ser política, a ruptura com laços criados pela economia, mas a grande independência é essa de criar um pensamento próprio, olhar-se a partir de dentro.
Como o autor moçambicano mais lido no mundo, há algum sentimento de responsabilidade em retratar sua terra fidedignamente?
Eu não me posso sentir representando qualquer coisa. Eu represento até a mim mesmo muito mal. Mas eu sinto que eu trago Moçambique sim, e isso é preciso ser entendido porque Moçambique não existia há trinta e poucos anos. Eu sou mais velho do que meu próprio país. Como eu me entreguei à luta de libertação, agora tenho esse dever de transportar a bandeira e mostrar que existe aquele país, porque às vezes chego a lugares em que as pessoas não tem ideia nenhuma que existe um lugar chamado Moçambique. Isso é um gosto, não é tanto uma missão para mim.

E como os moçambicanos recebem os seus livros?
Eu acho que os moçambicanos, e é difícil ser eu a dizer isso, me incumbem essa responsabilidade, esperam de mim. Lá eu sou muito reconhecido, e não é muito difícil de ser reconhecido, é um país pequeno, digo isso à vontade porque não é por mérito próprio. Às vezes, quando estou indo viajar, a pessoa que varre a rua ou trabalha no aeroporto para e diz-me: “Represente bem nosso país”, como se diria a um futebolista.
Como o autor moçambicano mais lido no mundo, sente-se incomodado por ser sempre questionado sobre política?
Geralmente perguntam ao escritor qualquer coisa e o escritor responde qualquer coisa porque se pressupõe que o escritor sabe sobre o Oriente Médio, sobre gastronomia, etc. E, às vezes, o escritor embarca nesse equivoco e começa a falar de coisas que ele não sabe. No caso específico da África, isso acontece porque o que as pessoas conhecem é um retrato político que se produz sobre o continente. Quando eu vou ao assunto e respondo, é porque me apetece mostrar que a África é isso, mas é outra coisa além do retrato oficial simplificador que aparece nos jornais.
Nos últimos três livros, o senhor tem deixado um pouco e lado neologismos e reinvenções de linguagem para consolidar a sua voz de escritor. Para o senhor, a voz é mais importante que o estilo?
Eu acho que as duas coisas são, se calhar, uma mesma. Eu olho para trás sem nunca ter arrependimento do que eu já fiz, mas eu acho que havia um certo deslumbramento por minha parte. Naquele momento eu queria fazer bonito, e agora, num outro momento da minha vida, não é isso que me apetece. Eu quero que a história ultrapasse a mim próprio, como se eu deixasse de ter importância como criador.
Ainda assim, uma característica que permeia cada vez mais suas obras são as pequenas filosofias, geralmente nos diálogos entre personagens. A sabedoria popular pode ser fabricada?
O que importa para mim no que a gente chama de filosofia popular não é que ela seja popular, mas que seja criativa e nos atire para um mundo que tem que ser pensado com outros fundamentos, longe daquilo que a gente acha que já sabe.
Eu sempre me lembro de uma história, vou contá-la. Quando Moçambique teve sua primeira eleição, aquilo estava sendo feito contra a cultura tradicional. Ninguém escolhia os chefes, era algo presente no sangue dos líderes. Quando começaram a surgir as campanhas eleitorais, as pessoas reagiram estranhamente. Veio então um candidato à aldeia onde eu estava, e ele usou uma frase muito infeliz: “Viemos cá salvá-los”. Falou sobre construir estradas, escolas, hospitais, e as pessoas ficaram encantadas porque achavam que aquilo era algo genuíno. Todos, menos uns velhos que estavam lá atrás. Um desses velhos disse: “Nós estamos muito agradecidos com a sua gentileza, vindo de tão longe para nos salvar. Isso me faz lembrar da história do macaco e do rio”. Sentou-se e não contou a história, como se nós já a conhecêssemos. E o político teve a infeliz ideia de perguntar como era essa história. Ela conta sobre um macaco que seguia junto ao rio, olhou para a água, viu um peixe e disse: “Aquele bicho está dentro da água! Vou salvá-lo”, e tirou o peixe de dentro do rio. O peixe, coitado, debatia-se freneticamente, e o macaco admirava-se: “Meu deus, quanta felicidade!”. Até que o peixe morreu e o macaco pensou: “Puxa, se tivesse chegado um pouco antes teria salvado este animal”. Vê, a sabedoria que está aqui é a maneira como o que ele queria dizer foi dito numa história, argumenta-se por ela. Essa construção da metáfora é o que o poeta procura desesperadamente. Então eu vou ali buscar não tanto a filosofia popular, mas um mecanismo convertido numa pequena história para aquilo que nos pareça um assunto muito solene, muito sério.
A Confissão da Leoa trouxe de volta uma característica de seus primeiros romances, que é o fundo policialesco, de mistério a ser resolvido. Há uma influência desse gênero na sua formação, ou trata-se de simplificação do confronto da narrativa que lhe possibilita trabalhar outros aspectos literários?
Eu fui um leitor de policial, e tenho a ideia de que a viagem e o crime são construtores de uma narrativa, na medida em que sugerem um mistério e pedem que a gente saiba o que se passou. Mas eu não me vejo como um construtor de narrativas. Eu construo personagens e trabalho na fronteira de contos que se costuram. O fascinante na prosa é a maneira como ela aceita a poesia e como aceita ser um palco de personagens, como se elas existissem em um teatro e elas é que contassem a história a mim.
Outro aspecto bem marcado em seus romances, em especial em O Outro Pé da Sereia, é a vontade de esquecer em contraposição à necessidade de lembrar. Como o senhor vê o esquecimento?
Eu vejo o esquecer não como um lapso ou uma ausência. Esquecer é uma construção, tanto quanto o pensamento produtivo. É como se houvesse alguém dentro de nós que soubesse sempre o que tem que apagar e o que tem que deixar registrado, e eu noto essa ansiedade de esquecer como importante na produção do presente, porque o que eu vi em Moçambique foi uma lição. Foram mortas 1 milhão de pessoas na guerra, e quando ela acabou, eu pensei que as memórias iriam causar outra briga no país. Mas, de repente, como um consenso silencioso de um parlamento invisível, decidiu-se esquecer. Se vocês visitarem Moçambique, nunca se ouve nada sobre o assunto. Pode não ser a melhor solução, mas foi a solução que aquela gente encontrou para não reavivar demônios e fantasmas, e funcionou. Países como a África do Sul adotaram a Comissão da Verdade e as pessoas são chamadas a depor, é um trabalho quase policial... Em Moçambique, os soldados que lutaram dos dois lados foram absolvidos pelas famílias – a família continua sendo a grande instituição – e funcionou bem. Como produção da história, um país precisa esquecer. O Brasil também teve de esquecer. Se perguntam onde é o Brasil, a história começa com a chegada dos portugueses, não há história atrás.
Seus romances giram em torno de um mesmo universo sem, contudo, que eles se unam como uma única Moçambique, pois cada aldeia de seus romances tem lendas e tradições próprias. Há muitos países em um país?
Sim. Vocês, brasileiros, são campeões nisso. Mas em Moçambique eles estão muito à flor da pele. Nós ainda estamos criando uma nação, e estamos construindo-a sobre outras nações que são diversas, em língua, cultura e histórias distintas. Essa diversidade para mim é um confronto, porque o país precisa ser um e, apesar disso, quando eu olho para cada uma dessas parcelas eu vejo Moçambique. Por mais que se diga que o sul do Brasil é representado por alemães, eu venho para cá e me parece sempre o Brasil. E em Moçambique ainda não é assim, o tempo precisa construir esse componente dominante que unifique o país. Mas agora é um tempo feliz, porque todos eles coexistem tentando brigar para ver quem aparece como o rosto de Moçambique.
O senhor teme que seus livros fiquem presos para sempre ao universo africano a uma realidade específica?
É possível que eu esteja sempre escrevendo capítulos de um único livro. Mas se é um tema que eu acho que mantenho é a busca pela identidade. Mas eu não tenho essa ideia de que eu tenho uma carreira. A relação que eu tenho com a escrita é a capacidade de recriar a mim próprio e manter um laço com a minha própria vida, não mais do que isso. Não tenho uma ambição de fazer uma obra, tudo isso aconteceu por acidente. Não sei responder a pergunta porque nunca construí nada com um plano, esses livros simplesmente aconteceram.
A literatura brasileira produzida nos últimos 20 anos se distancia substancialmente do literatura lusófona. Há um consenso geral na crítica brasileira de que a literatura produzida em Portugal e na África tem uma riqueza linguística muito maior. Como o senhor percebe a literatura brasileira?
Pensamos a mesma coisa de vocês. Achamos que o Brasil tem uma riqueza muito feliz. A língua portuguesa ganhou uma dinâmica, um enriquecimento no Brasil, que eu acho que nenhuma outra língua vai conseguir. Trata-se de uma cultura que teve de buscar na língua do outro uma marca de identidade própria. Os brasileiros fizeram-se outros. Queriam dizer aos portugueses: “Na língua que a nos é comum, somos diferentes”. Introduziram essa marca de diferença, e isso é fascinante para nós. No nosso processo de independência, olhamos para a literatura brasileira como uma inspiração enorme. Mas uma coisa que é preciso dizer é que desconhecemos muito o que se produz no Brasil hoje. Nós tivemos uma ligação muito grande com a literatura brasileira nos anos 1950, 1960, 1970 – curiosamente em alguns anos em que havia ditadura dos dois lados –, mas depois, com a democracia, a literatura foi entregue a leis de mercado que não estavam muito interessados no Brasil.
Veja alguns dos livros de Mia Couto lançados no Brasil:

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